O meio já não é meio nem mensagem

Hoje o consumo de notícias é incidental. O acesso às informações jornalísticas é uma prática secundária entre os jovens. A leitura é rápida e superficial. Ás vezes, basta o título. Ler uma notícia inteira é cada vez mais raridade.

Entre os hábitos de informar-se, que dominaram o século passado, o peso dos meios era forte: não diziam para a gente o que pensar, mas sim sobre o que pensar. Hoje o consumo noticioso é “incidental”: o acesso à informação deixa de ser uma atividade independente e passa a ser parte da sociabilidade das redes. Os jovens não usam os meios, mas sim vivem em ambientes digitais onde não há contextos, nem hierarquias, e sim fragmentos de histórias e opiniões que são escaneadas e, com muita sorte, lidas.

Estas e outras conclusões são apresentadas em um estudo qualitativo realizado pelos pesquisadores Pablo Boczkowski, Eugenia Mitchelstein e Mora Matassi, do Centro de Estudios sobre Medios y Sociedad (MESO), da Argentina.

Proliferação de telas e conteúdos, nebulosas de likes e retweets, a voz dos amigos, a presença dos grandes meios. Leituras intercaladas e breves no ônibus, no metrô, ou enquanto se espera que mude a luz do semáforo.  O celular sempre ali, o computador ocupado com o trabalho ou estudo, o televisor como música de fundo e o papel quase objeto de museu.

Como é a experiência de consumo de notícias dos jovens na Argentina e o que acontece em suas práticas cotidianas? Que sentidos, interpretações, usos e hábitos se cristalizaram na atualidade?

O MESO, em uma iniciativa conjunta com a Universidade de San Andrés e a Northwestern University, realizou entrevistas regulares, em profundidade, para indagar sobre os consumos de meios e bens culturais. Até este momento foram realizadas 24 entrevistas com jovens de 18 a 29 anos na Argentina, a maioria de classe média e média alta. Os resultados iniciais refletem uma série de práticas cotidianas e sentidos que resumimos como o consumo incidental de notícias. Segundo o dicionário da Real Academia Espanhola, incidental significa “que vem em algum assunto e tem alguma relação com ele”; e “de uma coisa ou de um fato: acessório, de menor importância”.

A maioria dos entrevistados acessa notícias por meios digitais, usualmente através de dispositivos móveis, como uma prática secundária de seu monitoramento das redes sociais. Não entram em contato com o universo digital para buscar notícias, e sim com aquelas que se encontram com eles nos feeds de suas redes, misturadas com piadas e anedotas de amigos, pedidos de ajuda, fotos de viagens, animais e comidas. Às vezes clicam nos títulos e dedicam pouco tempo para ler a informação, além do título e da chamada, para imediatamente voltar ao Facebook ou interromper o consumo midiático porque há que descer do transporte e começar a caminhar.

Esta incidentalização do consumo de notícias gera uma perda de contexto e hierarquia do conteúdo jornalístico na experiência do público. O diário, o programa de rádio e a televisão desaparecem como uma unidade que apresenta uma visão ordenada e representativa da atualidade. O que resta são pedaços de histórias e opiniões, imersas em um mosaico gigantesco de informação de todo tipo e de toda procedência.

A notícia incidental marca uma quebra com a matriz que uniu tecnologia, informação, política e vida cotidiana durante o século XX. Para entender melhor tais implicações, é necessário primeiro ver o que dizem os protagonistas.

O celular na cabeça

“Celular (1), laptop (2), televisão (3)”. Esta foi a resposta de Sofia, uma estudante universitária de 20 anos, quando pedimos um ranking dos dispositivos que usa em sua vida cotidiana. A primazia do celular foi evidente em quase todas as entrevistas. “É como uma extensão de minha mão”, disse Maria, outra universitária de 22 anos.

A tecnologia é chave para entender o consumo de notícias. Desde a invenção da imprensa há mais de 500 anos, a maior parte das notícias é comunicada através de um objeto mediático como o papel, o rádio, a televisão, o computador e o celular. Estes distintos objetos, juntos às redes organizacionais, culturais e narrativas que os produzem e dão sentido em distintos momentos históricos, configuram o entorno tecnológico no qual acontece o consumo de notícias. Para compreender a maneira na qual os jovens se informam sobre a atualidade é necessário analisar como usam os dispositivos tecnológicos.

Tais usos não se depreendem somente das propriedades dos artefatos. Joana, de 23 anos, explica: “Se quisesse usar mais o computador, tranquilamente poderia deixar de acessar as aplicações no celular e usá-las no computador. Posso transferir as atividades que tenho de um a outro, mas é mais cômodo fazê-lo no celular. Acostumei a fazer algumas coisas no celular, outras no computador e outras na televisão.”

O caráter multiuso do celular, sua condição portátil e onipresente, e sua conectividade principalmente são os principais argumentos dos jovens para assinalar o primeiro lugar. “Faço tudo com o celular. Confiro e respondo meus emails, leio Twitter, leio o jornal, tudo com o celular”,  afirma Ana, 21 anos. Isto se vincula com a necessidade de sentirem-se conectados, como expressa Carolina, estudante de arquitetura: “O que mais uso é o celular porque permite comunicação constante, com família, amigos, chefe”.

O computador, por outro lado, está associado a usos instrumentais (fundamentalmente, trabalho e estudo) e é menos constante que o celular. Nas palavras de Martín, estudante universitário, de 22 anos: “Uso bastante pouco o computador. Sobretudo porque não funciona bem. Mas às vezes tenho que fazer algo do trabalho em casa, ou algo da faculdade”. Maria também diz que o computador é somente “para fazer coisas da faculdade”. Esta associação com fins instrumentais produz, em alguns casos, um menor uso do computador fora do trabalho e do estudo, como deixa entrever Marina, graduada em economia, 22 anos: “Eu usava muito o computador. Agora, a verdade é que estou todo o dia frente a um computador no trabalho, e o que menos quero fazer no tempo livre é usá-lo”.

A televisão aparece em terceiro lugar e geralmente como um som de fundo que acompanha a realização de tarefas cotidianas e cujo conteúdo só desperta atenção se passa algo interessante. Maria diz que o televisor fica ao fundo “e se há algo que me chama atenção eu sento”. Estevão, estudante universitário, assiste “TN ou às vezes Infama. Olho quando vejo que há algo que me interessa e aí presto atenção”.

Em um mundo dominado por telas, o papel aparece relegado na vida dos jovens. Maria conta que lê jornal regularmente, mas “sempre no computador, em papel nunca”, apesar do fato de, em sua casa, comprarem o diário impresso. Prefere o formato digital: “pela comodidade de não ter as folhas enormes, de ter que abrir os diários (…) e porque, como está muito mais resumido, você pode ver mais rápido o que deseja ler, me parece muito mais eficiente. Na tela aparecem diretamente os títulos e se te interessa pode ver mais em profundidade, e se não, não tens que ver o título com todo o texto abaixo”.

O ritual dos domingos é, para alguns, uma exceção a tais hábitos. Como disse Sofia, “o papel eu toco de vez em quando, geralmente nos finais de semana porque chega a meus pais e eles fazem a leitura no café da manhã, que eu tomo com eles”.

Encontrar a notícia nas redes sociais

“Esta manhã, antes de entrar no curso, estava na cafeteria e lendo com o celular o Twitter.

De que falava Sofia?

Da ocasião mais recente em que havia lido uma notícia.

As redes sociais, consultadas sobretudo nos dispositivos móveis, se posicionam como o modo mais comum pelo qual os jovens acessam informações jornalísticas. Em vez de sentar-se, ler o diário, ver a televisão ou escutar o rádio, a maioria dos entrevistados se encontra com as notícias de forma não intencional, como parte de seu ato corriqueiro de checar constantemente o feed de conteúdos do Facebook ou Twitter.

Não vão às redes para ler notícias, senão para se interar da atualidade em um encontro quase fortuito com posts de jornais e agências, e também de contatos virtuais. Maria comenta que “em geral, entro (nos sites de notícias) através do Facebook porque alguém compartilhou alguma notícia.  Clico e depois de entrar me detenho nos títulos que estão na página e se há algum que me chama a atenção, entro”.

Consultado sobre a notícia que havia lido mais recentemente antes da entrevista, Javier um empregado no setor de comércio, de 28 anos, disse que foi ”em relação ao bloqueio da Frente Justicialista dando quórum para pacto com os holdouts” (holdouts são credores rígidos e inflexíveis que se negam a participar da reestruturação de uma dívida, apelidados de “abutres” na Argentina, durante o governo Cristina Kirchner). E acrescenta: “estava no Facebook e me pareceu que alguém compartilhou esta notícia. Ingressei porque me interesso ver, na realidade, quem ou quais políticos davam quórum para aprovar o pagamento aos holdouts”.

A normalização do consumo incidental de notícias mediada pelas redes sociais se faz evidente também no discurso de Romina, estudante universitária, de 19 anos, que percebe como ”antiga” sua própria prática de visitar as páginas web dos jornais. “Se estou querendo seguir uma notícia abro La Nación que diz: ‘último momento’ e te vão refrescando de informação a cada dois segundos. Assim é como o faço hoje (…) Sou um pouco à moda antiga” .

A combinação de celular e redes sociais gera um acesso quase onipresente na atualidade. Nas palavras de Ana: “eu sempre uso nada mais do que o celular e me informo muito através do Twitter.  Por exemplo, de manhã, a primeira coisa que faço é entrar no Twitter e olhar os Trending Topics. Depois, quando vou no transporte público (que é bastante longo o trajeto). E também quando estou entediada, sem fazer nada, fico no Twitter”.

Viver nos meios

As palavras de Ana fazem alusão a jovens que não se posicionam como sujeitos que usam os meios, mas sim que vivem neles, como se tratasse de um ambiente digital semelhante aos ambientes urbanos e naturais que englobam suas vidas cotidianas. Abril, estudante universitária, de 19 anos, afirma que está nas redes sociais “todo o tempo. Agarro o celular e entro todo o tempo”.

Este estar nas redes sociais é percebido como uma necessidade social da qual é muito difícil escapar. Romina comparte uma anedota que expressa esta necessidade. “Durante dois meses apaguei o meu Facebook. E depois me dei conta do quanto que me custava. Bem, queremos sempre lutar contra o sistema, mas não se pode viver fora dele”.

Vários entrevistados associam o Facebook a um objeto cotidiano cuja utilidade é difusa. Javier expressou assim: “o Facebook realmente é um hábito, mas não tem um propósito realmente para mim”. Esta falta de propósito explícito convive com a atitude de checar permanentemente. Ao ser perguntado sobre qual momento do dia está na rede, Esteban responde: “na realidade em qualquer momento porque estou continuamente com o celular ou o computador, então entro nas redes sociais e vejo; o mesmo com o Whatsapp que me enviam vídeos e vou assistindo tudo”.

Práticas de leitura

Os jovens hoje somente leem notícias sem rotina predeterminada, algo bem distinto do que se consagrou durante a segunda metade do século XX: a leitura do jornal pela manhã, antes de ir para o trabalho, ou a universidade, o programa de rádio ou o jornal no trânsito ou desde as primeiras atividades diárias, e o programa de televisão à noite. Laura comenta: “Não tenho tempo. Se entrei e me interesso, eu lerei ou então sairei, ou seja, não é que eu tenha uma quantidade de tempo dedicado a isso, mas sim que há dias que não leio nada e há outros em que leio tudo o que me aparece”.

Como nos referimos anteriormente, às vezes os finais de semana marcam uma quebra com estas práticas dominantes de leitura. Ana conta que “nos domingos leio muito mais diários que durante os outros dias da semana. Todos on line. Em geral, para informar-me, nos dias de semana, Página/12 não me parece muito prático porque as notícias são muito extensas, a plataforma no celular torna a leitura chata. Mas nos finais de semana têm conteúdos de opinião. Então, na realidade, leio não para informar-me das coisas, mas sim para ler opiniões”.

Os entrevistados dizem ler as notícias de forma breve, interrompida e parcial. Maria conta: “Leio o título, o que está no alto e depois em diagonal o conteúdo. Se há algum parágrafo que me chama muito a atenção o releio; porém si… no geral, em diagonal”. Ao menos a priori, e em função do grau de interesse inicial que suscitam as distintas notícias, o que é primordial é “dar uma olhada”,  como expressa Lucila, 27 anos, uma produtora de televisão: “Eu faço um escaner nos títulos. E depois, se algo particularmente me interessa, entro”. Marina concorda: “Quase nunca leio uma notícia inteira, salvo se me interessar muito. Por exemplo, se caiu um avião e me interessa muito saber o que aconteceu, leio toda a notícia. Mas isso é muito raro. Leio somente a primeira parte, o título e o primeiro parágrafo”.

Muitas vezes, basta o título. Maria estava seguindo o tema dos Panamá Papers “mas não com tanto detalhe. Ou seja, por exemplo, não sei bem que disse Macri com respeito ao tema. Sei, por exemplo, o que disse Elisa Carrió porque alguém compartilhou a notícia, mas li o título, tampouco entrei”.

Estas práticas de leitura resultam na perda de contexto e hierarquia das notícias, que aparecem mescladas com conteúdos de todo o tipo.Tal como aponta Ana, “no Facebook se vê de tudo, de um cãozinho roubado a tudo”. E isto se vincula com a perda de certo lugar privilegiado e de autoridade do conteúdo noticioso, envolto em uma “massa de informação ou desinformação”. Como disse Rodrigo, 29 anos, empregado no comércio, “leio o que os outros compartilham, geralmente no Facebook porque é agora uma massa de informação ou desinformação. Porque eu creio que as vezes te desinforma um pouco, porque sobem cada coisda… Ali a gente pode subir o que quiser, então às vezes me parece que as coisas não estão boas, para mim, não estão”.

Amanhã é melhor?

O surgimento da notícia incidental marca uma ruptura com as práticas de consumo de meios de comunicação que dominaram o século XX. Elas constituíam-se numa atividade autônoma como ler o jornal, ou olhar a televisão, e para as quais se dedicava tempo considerável. Aconteciam em um lugar e tempo relativamente fixos – no lar, mas também em locais como  cafés ou nos transporte públicos – e poderiam estar organizadas em torno de atividades domésticas e públicas rotineiras.

A notícia incidental implica uma quebra desta lógica no encontro com a atualidade: o acesso à informação deixa de ser uma atividade independente para ser parte da sociabilidade das redes; a quantidade de momentos de acesso se multiplica, mas o tempo em que cada indivíduo se dedica é breve; o consumo noticioso acontece em qualquer lugar e momento onde exista alguns segundos livres; e tudo isso sucede de maneira mais espontânea que rotineira, padronizada.

A notícia incidental não é a última etapa neste processo de evolução histórica, senão a fase mais recente de uma transição mediática sobre a qual não podemos antecipar quando e como vai se concluir. Se a direção desta tendência continuará, poderá mudar o equilíbrio que o papel das notícias tem na conexão entre a comunicação dos meios e aquela produzida pelas pessoas. Como os estudos de opinião do século XX revelaram, a influência dos meios no público está mediatizada pelas conversas na vida cotidiana.

Precisamente pelas formas de consumo que dominaram o século passado, o peso relativo dos meios era forte na equação; não tanto para dizer para as pessoas o que pensar, senão, pelo menos, sobre o que pensar. A perda de contexto e hierarquia que se manifesta no consumo incidental de notícias altera esta relação de forças a favor da comunicação entre as pessoas. O ascendente dos contatos nas redes sociais se soma às relações da vida cotidiana como fontes de influência. Isso carrega um retrocesso no poderio dos meios jornalísticos e um aumento na incidência das redes sociais como Facebook e Instagram, as quais moldam o menu informativo selecionando distintas entradas nos feeds de suas membros.

Uma transição deste tipo gera incerteza na equação mídia e comunicação política. Que sentido tem investir recursos para gerar conteúdos extensos quando boa parte do consumo não somente entra pelas redes e ainda permanece nelas, e quando são as próprias redes que recebem a maior parte dos investimentos publicitários? Qual é a dinâmica central da comunicação política quando os candidatos constroem narrativas, afiliações e mobilizações através das redes, mais do que pelos meios jornalísticos – como, por exemplo, fez a campanha presidencial de Mauricio Macri?

A incerteza abre novos horizontes. A perda de contexto e hierarquia da notícia e a expansão dos vínculos nas redes sociais implicam renovadas tramas de comunicação, sociabilidade e cidadania nas quais a lógica do algoritmo despreza a lógica editorial.

O rebaixamento dos meios na matriz que une pessoas e o poder político e empresarial poderia fomentar uma atitude de maior ceticismo por parte do público e de maior transparência por parte dos atores chave. Sem dúvida, isto ocorreria somente se o público mantivesse uma atitude crítica a respeito dos prejuízos inscritos nos algoritmos das redes sociais. Se assim fosse, talvez estivéssemos frente ao surgimento de uma nova cultura mediática mais livre, menos opaca, com menos hierarquias, na qual a busca de evidencia e destaque conviveriam com uma confiança distribuída de maneira mais diversa entre uma multiplicidade de atores.

Talvez, parafraseando a canção de Luis Alberto Spinetta, “ainda que me forcem, eu nunca vou dizer que todo o tempo passado foi melhor, amanhã é melhor”.

(obs. os autores agradecem a Victoria Andelsman, Sofía Carcavallo, Rodrigo Gil Buetto, Camila Giuliano, Belén Guigue y Silvana Leiva, assistentes de pesquisa no MESO, por sua colaboração na realização, transcrição e análises preliminares das entrevistas em profundidade; e a Amy Ross, Celeste Wagner, Victoria Andelsman, Silvana Leiva e Sofía Boczkowski por seus comentários sobre versões anteriores deste artigo)

 

Fonte: Revista anfibia