Da vaca e de outras vítimas da intolerância

Circula nas redes sociais a seguinte piada: “O clima anda tão tenso que se você disser que tem intolerância à lactose é capaz de uma vaca te processar” – espirituosa referência às mais diversas e condenáveis formas de discriminação que insistem em grassar entre nós. Xenofobia, homofobia, racismo, etnocentrismo, sectarismo político, fundamentalismo religioso, fanatismo esportivo… Quando a alteridade e a empatia se perdem, a intolerância ganha corpo e voz sem limites, sem freios.

Mais até do que a construção do Muro de Trump na fronteira entre os Estados Unidos e o México, a exacerbada incapacidade de aceitar o diferente é palpável nos espaços virtuais. Estes, por sua natureza, favorecem a covardia e a impunidade. Da fortuita agressão verbal à ofensa pessoal em público, passando pelo discurso do ódio e até pelos chamados crimes contra a honra (calúnia, injúria e difamação), os casos se multiplicam.

Recentemente, os holofotes estiveram sobre os ataques em vídeo no Youtube, postado por autointitulada “socialite” brasileira radicada nos Estados Unidos, à Chisomo (“Titi”) Gagliasso, menina africana adotada por casal de atores brasileiros. Enquanto aquele episódio ganhou notoriedade em virtude de os pais da criança serem do meio artístico, situações “menores” passam despercebidas nesse universo aparentemente sem fronteiras que é a internet.  Comentários grosseiros e grotescos, além de notícias falsas (fake news), transitam livremente em sites jornalísticos, sem moderação. No portal G1, por exemplo, insensível à dor dos familiares da tripulação de 44 submarinistas argentinos vitimados pelo acidente que fez naufragar o Ara San Juan, um leitor vaticinou que a Capitã da embarcação “tinha cara de comunista”, como se isso pudesse ter alguma relação com o trágico destino do submarino, desaparecido em 15 de novembro deste ano. Um escárnio.

Tal como a internet, a intolerância não conhece fronteiras. Há poucos dias, em perfil de língua inglesa no Instagram, dedicado à série televisiva Game of Thrones, figurava o comentário antissemita de um internauta que expressou repulsa ao fato de a atriz Emilia Clarke “tocar uma judia”, no caso, a colega – não de set, mas de profissão – Gal Gadot. Conhecida por interpretar a Mulher Maravilha nos últimos filmes do estúdio DC Comics, Gadot foi Miss Israel e serviu ao exército israelense antes de se tornar a intérprete de um dos ícones do movimento feminista dos anos quarenta.

Tudo isso é bastante irônico se analisarmos as personagens reais e fictícias envolvidas.

A menos que seja adepto de um dos vilões da série, o fã de Game of Thrones parece não perceber a incoerência de seu comentário eivado de preconceito. Na fantasia de autoria de George R.R. Martin, adaptada para a TV pela HBO, Clarke interpreta Daenerys Targaryen, uma jovem que recorre à magia de seus dragões não só movida pelo sonho de recuperar o trono que pertenceu à sua família, mas, antes, para combater a escravidão por onde passa. Assim, recorre à força ao passo que combate a opressão. Espírito bastante distinto, para dizer o mínimo, do antissemitismo que levou ao holocausto na Segunda Guerra Mundial (1939 a 1945) e, hoje, inspira o neonazismo.

Não por coincidência, foi em meio aos anos de guerra, precisamente em 1941, que um psicólogo americano simpatizante do movimento das sufragistas criou a “Wonder Woman”, primeira super-heroína protagonista de quadrinhos, símbolo do então incipiente empoderamento feminino – ainda que a personagem tenha sofrido significativas transformações ao longo do caminho. Aliás, a Mulher Maravilha não foi a única personagem de quadrinhos a refletir as condições políticas e socioeconômicas reais de sua época. Super Homem, Capitão América, Batman (e depois Robin), Pantera Negra e X-Men, por exemplo, nasceram da inspiração na sociedade e no contexto histórico em que se inseriam seus criadores. Guerra, criminalidade urbana, desigualdade, racismo, homossexualidade eram algumas das questões espelhadas nas histórias dos heróis.

E como falavam dessas questões aberta ou veladamente, foram alvo de repressão – e de mais intolerância. Durante a Guerra Fria, o senador norte- americano Joseph McCarthy, do Partido Republicano, empreendeu campanha moralista e anticomunista, marcada pelo medo. O macarthismo, também conhecido como “caça às Bruxas”, quando não os fez calarem, forçou a modificação de vários daqueles heróis. E embora não passe de mera eventualidade, não escapa à atenção a curiosa coincidência do sobrenome do senador republicano e de Day McCarthy, a ofensora que destilou seu veneno contra a pequena Titi no Youtube.

Se é certo que a tecnologia encurta distâncias, não seria igualmente pacífico afirmar que cumpre a promessa de aproximar pessoas e eliminar barreiras, contribuindo para a construção de uma sociedade global integrada, igualitária, mais justa. Um sonho de “pax universal”.

A esse respeito, a revista inglesa The Economist publicou, em novembro passado, artigo sob o título “Do social media threaten democracy? (As mídias sociais ameaçam a democracia?). Para tentar responder ao pertinente questionamento, é preciso reconhecer a democracia não apenas como sistema de governo, mas como um valor a ser cultivado e compartilhado pelos homens, na busca por igualdade, liberdade e fraternidade. Sim, o mesmo e ainda atual ideário da Revolução Francesa – pelo menos antes de descambar para a fase do Terror.

A lembrança do terror jacobino, a propósito, traz à mente outra reflexão: estaria a humanidade fadada a, ciclicamente, ver uma criação idealmente boa voltar-se contra seu criador? Vejamos a promessa da prosperidade pela globalização econômica. No início dos anos 2000, o Prêmio Nobel de Economia Joseph Stiglitz colocou na berlinda os auspícios das bandeiras neoliberais no livro “A Globalização e Seus Malefícios”. No campo da política, por sua vez, em “O futuro da democracia”, Norberto Bobbio analisou os regimes democráticos e suas transformações à luz do que chamou de “promessas não cumpridas da democracia” – ressalte-se, no entanto, que as conclusões de Bobbio não se afastam da máxima de Winston Churchill segundo a qual “a democracia é a pior forma de governo imaginável, excetuadas todas as outras experimentadas”.

Talvez o homem enfrente desafio semelhante com a internet. Porque ao mesmo tempo em que proporciona conquistas inimagináveis até mesmo para Marshall McLuhan, autor de “A Galáxia de Gutenberg” (1962) e da expressão “aldeia global”, o alcance da rede internacional de computadores também se presta à mentira (“pós-verdade”), ao preconceito, à opressão, à pedofilia, à prostituição, ao narcotráfico e a outros crimes transnacionais, além de ofensas ao princípio da dignidade da pessoa humana.

E embora alguns daqueles males assombrem a humanidade há milênios – segundo judeus e cristãos, desde os tempos bíblicos –, a velocidade de propagação e o volume de informação (ou desinformação) disseminada pela internet geram danos inestimáveis, até irreversíveis. Como diz o provérbio, a palavra pronunciada não volta atrás. E em tempos de intolerância e pós-verdade, difícil não citar Joseph Goebbels, a quem se atribui a afirmação de que “uma mentira repetida mil vezes se torna verdade”. Ou será que o chefe da propaganda nazista nunca disse isso?

Como equacionar esse desafio, responsabilizar e punir a má-fé e a covardia? Por meio da autorregulamentação? Da instituição de mecanismos de cooperação internacional via celebração de tratados e convenções multilaterais, a exemplo da Convenção de Budapeste sobre Crimes Cibernéticos? Do estabelecimento de legislações nacionais específicas para as mídias sociais? Do recrudescimento da legislação penal vigente, mediante agravamento de penas?
Da ponderação, sopesando-se, entre outros, os direitos à igualdade, à segurança, à liberdade de expressão, à informação, à imagem, à intimidade e à dignidade da pessoa humana?

Em 10 de dezembro de 2018, a Declaração Universal dos Direitos do Homem completará 70 anos. São apenas 30 artigos, de leitura suave e rápida, cuja íntegra está disponível em inúmeros sites, formatos e idiomas na internet. É recomendável dedicar breves minutos às sábias palavras da quase septuagenária senhora, notadamente ao que preconiza o dispositivo a seguir:

Artigo 29.
1. Todo ser humano tem deveres para com a comunidade, na qual o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível.

2. No exercício de seus direitos e liberdades, todo ser humano estará sujeito apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática.

Respeito. É o que falta nos meios virtuais e reais. Na voz e no ritmo de Aretha Franklin, R-E-S-P-E C-T. Nas sempre vivas palavras de Martin Luther King, ainda temos um sonho.

Autoria: Márcia AzevedoJornalista e Especialista em Direito Constitucional.