A arrogância do Direito e da Comunicação

Cenário político brasileiro convida a examinar condições em que certos poderes violam direitos, transbordam sua condição natural de decisores e ultrapassam, ao jugar, as linhas do Direito

Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal
Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal

A cuidadosa leitura do texto de Geneviève Koubi revela-se de extrema importância no atual cenário dos conflitos político-administrativos em curso no Brasil. Noções que a autora destaca em seu texto nos auxiliam a acompanhar como ações que são hoje articuladas pelos campos do Direito e da Comunicação cristalizam um processo que visa destituir a investidura no cargo da autoridade máxima no país, a presidência da República. Fato grave, pois abala os alicerces da autoridade do governo em um ataque desferido ao cerne da representação do poder e ao ato ou ao exercício da autoridade estatal instituída na democracia no Brasil.

Geneviève Koubi abre o sétimo texto da série “Ensaios sobre a Arrogância” e se propõe a relacionar a arrogância e o Direito. Perguntamos, então, se é possível encontrar um aspecto positivo no exercício da arrogância? Ao que a autora responde, “todo poder instituído dispõe de um direito à arrogância”.  De início, Geneviève Koubi indica a tênue fronteira que separa as figuras do abuso de poder, do abuso de autoridade, de direito que pode ser caracterizado tendo por base uma escala que vai da figura de um excesso até diferentes formas de assédio, que são descritas no Código Penal francês, tais como, abuso dos fracos e ignorantes, da confiança, da relação dominante ou da dependência econômica.

“O abuso de poder traduz o espaço existente entre o discricionário e o arbitrário; o primeiro mistura a objetividade e a subjetividade” enquanto o segundo “é a expressão de uma escolha repleta de parcialidade.” […] “O abuso de autoridade é determinado à luz de garantias de direitos e liberdade de que gozam os cidadãos.” Ele designa as violações a esses direitos por um órgão ou por aquele que exerce uma função pública; assinala a inércia desse órgão ou a indiferença desse titular.”

Se “todo poder instituído dispõe de um direito à arrogância”, a arrogância do poder “pode evoluir da arrogância de decisão – legal ou legalizada – a uma arrogância ilegal ou proibida.” Pois “a noção de ato de governo foi construída por juízes que, recusando-se a realizar ato de arrogância, deixaram o campo livre para a arrogância das instituições do poder.”

“Sua particularidade, […] é conceder aos atos de força política do poder Executivo uma qualidade de segurança jurídica, colocando-os fora do alcance das jurisdições. Os atos de governo são atos políticos transmutados em atos administrativos “insuscetíveis de serem discutidos pela via contenciosa.” (Myriam Bahia Lopes – http://outraspalavras.net)

 

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Por Geneviève Koubi, na série Ensaios sobre a Arrogância. A autora é professora de Direito Público, Université Vincennes Saint-Denis (Paris 8), CERSA-CNRS UMR 7106 (Paris 2).

A. A arrogância coloca-se, exprime-se, afirma-se, independentemente se ela está sujeita a sua recepção individual, coletiva ou social. Nas ciências humanas e sociais, a abordagem moderna da arrogância repousaria sobre a formação das sociedades liberais e individualistas, pelas quais o domínio próprio torna-se a propriedade de si,(1) em seguida a visibilidade de si.(2) Nas ciências jurídicas, a arrogância pareceria evocar o abuso, o abuso de poder, de autoridade e de direito, o que constituiria em se apoiar na arrogância oriunda dos exageros ou dos excessos. A arrogância seria, então, desmedida e desproporção.

A noção de abuso reside nos desequilíbrios das relações de dominação/subordinação que podem suscitar ou atiçar, indo do excesso de poder (3) às diversas formas de assédio. (4) Composta no entorno de costumes feitos de uma posição, de um direito, de um poder, o abuso é um excesso das convenções e regras, da normalidade e da razoabilidade – assim que o Código Penal descreve o abuso dos fracos e ignorantes, (5) da confiança, (6) da posição dominante ou da dependência econômica.(7)

O abuso de poder se estende do exercício excessivo de um poder pela autoridade – qualquer que seja – que, no entanto, dispõe de maneira legítima a faculdade de dominação que lhe é atrelada se sua prática restringe-se aos limites ditos razoáveis. Na cena político-administrativa, o abuso de poder é distinto do abuso de autoridade.

O abuso de poder é alteração, o abuso de autoridade é transgressão. O abuso de poder traduz o espaço existente entre o discricionário e o arbitrário, o primeiro permite utilizar a margem de apreciação misturando objetividade e subjetividade ao risco de injustiça; o outro é a expressão de uma escolha repleta de parcialidade e inquietude.(8) O abuso de autoridade é determinado à luz de garantias de direitos e liberdade de que gozam os cidadãos. De uma parte, ele designa as violações a esses direitos por um órgão ou por aquele que exerce uma função pública;(9) por outro lado, assinala a inércia desse órgão ou a indiferença desse titular face às medidas privativas de liberdade.(10)

O abuso de direito se coloca como o exercício ‘anormal’ de um direito pelo seu titular. Ele pode significar um desvio de finalidade de um procedimento. Ele pode aparecer em todo o campo, no direito fiscal como no direito social, durante uma ação na justiça como na ocasião das relações contratuais. Ele consiste em uma falha, uma infração que é sancionada tanto no plano civil como no plano penal. Ele pode interessar o comportamento que se inscreve no limite da fraude como nos modelos reivindicados de uso da força, ou até nas armas sob o caráter indevido de legítima defesa.(11)

Esses excessos são aqueles que um enfoque jurídico da arrogância pressupõe. Ora, na medida em que “não existe arrogância, mas arrogâncias que se consagram e que são a repetição da mesma, variando segundo as situações, os tons pelas quais ela se exprime”,(12) as pistas para a reflexão aqui propostas no campo do direito público não contribuem ao discernimento da noção entorno das atitudes ou de inclinações.

B. Para Philippe Malaurie, “aquilo que salta aos olhos acerca de nosso direito contemporâneo não é um direito de humildade, ele é recorrentemente repleto de ambições orgulhosas, de excessos inflados de arrogância, tornando-o difícil de conhecer e de dominar o real: em seu orgulho, ele se torna cego e conduz ao caos.”(13) Essa apreciação coloca em evidência as pessoas, enquanto as situações, os fatos, a origem de ditas em direito, atos jurídicos e decisões judiciais, mesmo que realizadas pela arrogância, não são por esta causa repudiadas ou culposas.

C. No direito público, o peso da autoridade é de natureza política, implicada no jogo estratégico de domínio. Se, em um espaço democrático construído a partir de um conceito de igualdade, suas posturas arrogantes parecem manifestar um desprezo pelo direito, o que poderia ser de aparência. Seu objetivo primário é a emissão de disposições jurídicas. São assim os atos jurídicos derivados dos fatosde arrogância que retêm a atenção. Distinções devem, então, ser feitas entre as instituições, os organismos, as corporações, as pessoas segundo o lugar que eles ocupam no funcionamento do sistema político, jurídico ou social. Contudo, desde o instante em que uma apropriação ilícita do poder de edição de atos – de forma – jurídica é detectada, esses atos adquirem uma qualidade normativa ou prescritiva. A coerção, inerente ao discurso jurídico, realça certamente a força do direito,(14) mas, mistificando, ela é também a presunção da aparência.

I – O ‘direito à arrogância’ dos governantes: o ato de governo.

D. A saisie dos comportamentos revelatórios de um poder exorbitante, de um ascendente excessivo, de uma autoridade extrema, tem sua fonte nos instrumentos jurídicos que condenam a tirania. Se o valor acordado à noção de ‘justiça social’ é uma das fases fomentadoras de revoltas e revoluções, nas sociedades democráticas contemporâneas a via privilegiada pela qual se passa a mudança, articula-se em torno das leis e regulamentos. A construção de um Estado de Direito, que respeita os direitos humanos, realiza-se pelo direito.

Ora, mesmo nos Estados democráticos, o respeito do direito e dos direitos é repleto de nuances, mais ou menos sutis, que fazem referência a um conjunto de reflexos ou de respostas, que vão de uma suficiência pesada de superioridade para com as populações ou os indivíduos até uma insolência forte de uma resistência a toda forma de autoridade. A localização dessas configurações pouco importa, os governantes podem ser tão arrogantes quanto seus oponentes, qualquer que seja sua respectiva estratégia.

Ora, todo poder instituído dispõe de um direito à arrogância.

E. O direito à arrogância de que dispõe os detentores de um poder registrado nos arcanos político, administrativos e sociais, é estabelecido não segundo os lugares adquiridos, mas segundo as qualidades orgânicas. Estas, enquadradas por normas constitucionais ou legislativas, as atividades de decisão dos órgãos governantes são a fonte de atos de arrogância quando são extraídas da gama do direito e quando, apesar dessa diferença, elas são confirmadas por juízes – constitucionais, administrativos ou judiciários. Discutir sobre a arrogância do poder significa identificar uma arrogância decisional legítima e discernir os atos e comportamentos de arrogância que se encontram no limite da lei. A arrogância do poder evolui em um registro indo da arrogância de decisão – legal ou legalizada – a uma arrogância exactionnelle – ilegal ou proibida.(15)

Mesmo legítima ou autorizada, uma vez que ela quebra as linhas de força da noção de democracia, pois mantém a distância entre os cidadãos e as instituições políticas, a arrogância deve ser sancionada. Não é sempre o caso da doutrina do consenso (16) que a noção de interesse geral (17) interfere, tolerando assim o poder dos governantes de dizer e fazer a despeito ou para além da lei.

F. A noção de ato do governo (18) pode sustentar uma ilusão de um direito à arrogância por parte dos órgãos do poder. Esquematicamente, um ato do governo que, emanando de uma autoridade do poder executivo, é reconhecido pelos juízes como um ato jurídico dotado de uma “imunidade jurisdicional”. Ato que beneficia desta presunção irrefutável de legalidade, que produz efeitos de direito sem que seja possível examinar as razões e as consequências. É um ato que se encontra na razão de Estado.(19)

Inicialmente, a noção de ato de governo era invocada para todo ato editado por uma autoridade estatal dentro de um objetivo estritamente político, esta percepção não é totalmente abolida. De uma parte, os autores dos atos de governo são os órgãos intitulados – o Presidente da República, o Primeiro Ministro, o Ministro das Relações Exteriores, principalmente. Por outro lado, essas áreas mencionadas apresentam um caráter político ou dizem respeito às relações entre os poderes públicos. Assim, “as decisões correspondentes às questões políticas não são submetidas ao judiciário, porque não existe parâmetro jurídico de referência para operar como um controle; porque o Constituinte pode escolher deixar os poderes políticos livres para decidir; porque eles refletem, em última análise, o poder discricionário dos órgãos constitucionais. Nessas condições, é claro que o juiz, fosse ele juiz constitucional, não saberia, sem exceder a esfera propriamente jurisdicional de suas atribuições, conhecer as questões políticas. Ultrapassar esses limites seria, de fato, para o juiz, desempenhar um poder de decisão política que a ordem jurídica reconheceu que cabe somente ao órgão competente analisar o ato objeto do controle.”(20)

A noção do ato de governo foi, então, construída por juízes que, recusando-se em realizar ato de arrogância, deixaram o campo livre para a arrogância das instituições do poder. Sua particularidade, ainda, é conceder aos atos de força política do poder executivo uma qualidade de segurança jurídica, colocando-os fora do alcance das jurisdições.(21) Os atos de governo são atos políticos transmutados em atos administrativos “insuscetíveis a serem discutidos pela via contenciosa.”

G. A área do ato de governo é variável. A fim de não acordar poder público a uma grande latitude, o juiz administrativo tem procurado o limitar, a evolução jurisprudencial traduz uma resistência do juiz às arrogâncias dos governantes. Ela se compreende em relação ao aprofundamento do pensamento democrático e da determinação de um direito a um recurso efetivo.(22) Mas os esclarecimentos elaborados pelos juízes não conseguiram neutralizar o escopo desses atos.(23) Esses atos são abordados como sendo derivados das atribuições conferidas pelas constituições aos detentores do poder executivo.

A noção de ato de governo agrega, assim, a aplicação de disposições constitucionais, as vezes controvertidos, destinados a atribuir plenos poderes aos chefes de Estado ou de Governo, (24) a deixá- los decidir sobre a nomeação do primeiro ministro, da dissolução de assembléia parlamentares, (25) a oportunidade de deposito de projetos de lei diante das Assembléias.(26) Na França, ele domina as área do pensamento ‘reservadas’ aos atores do poder executivo, ao chefe de Estado para as relações internacionais,(27) ao governo para a condução da política da nação.(28)

A noção continua substanciada em abordagem jurídica do poder como da arrogância. Talvez seja essa uma das razões pelas quais a “teoria dos atos de governo constitui uma das matérias mais controvertidas do direito administrativo”.(29) O que não impede que a arrogância dos dirigentes seja ratificada. Ela participa da organização do mundo do direito “porque o direito é o exercício do poder e que, em primeira vista, o exercício do poder será antinômico à humildade”.(30)

H. O exercício efetivo do direito à arrogância não saberá, no entanto, justificar as pretensões dos poderes públicos a restringir os direitos coletivos (greves, manifestações de rua, reuniões), nem

absorver as coisas da vida privada em ladainhas comportamentalistas ditadas pela industrialização de produtos de consumação (saúde, educação, alimentação, cultura).

A arrogância de privilégios está transmutada em uma arrogância do interesse geral que funda o direito à arrogância dos governos. Sob o efeito de diretivas que contabilizam as despesas públicas, desde o fim do século XX, essa arrogância do interesse geral se desloca para umaarrogância de interesses econômicos. A passagem semiótica dos privilégios aos interesses econômicos, marcadores do liberalismo político e econômico dominante, densifica o dogma da competividade dentro da fábrica de interesse do Estado. A extensão contínua no espaço econômico das sociedades liberais faz com que as dimensões atribuídas à noção de gouvernance invistam por sua vez no terreno da injustiça …

II – O “direito de arrogância” dos servidores: os funcionários de fato

i. O paradoxo da arrogância se desenvolve na refração contínua do olhar; de certa maneira, ela evoca somente o ponto de vista daquele que ressente e se vê como vítima”(31) ou daquele que, provável a reconhecer, admite se submeter. Ora, a arrogância não é abordada pelas ciências jurídicas nos termos do ressentimento mas frequentemente seguindo um método de qualificação jurídica que, usando os standards de normalidade, afasta as sensações ou sentimentos. Para atribuir um sentido, seja para condená-la ou justificá-la, colocar na perspectiva jurídica, a arrogância retém as formas e as razões do exercício do poder, os motivos do ato de poder. Que seja a expressão de uma postura (governo), da realização de uma função (direção), da execução de um missão (atribuição), da manifestação de uma posição estatutária (comando), de uma capacidade ou de uma aptidão (habilitação), a arrogância pode ser certificada, apoiada, seus efeitos podem ser ratificados pelo ordenamento jurídico.

Os ‘fatos’ ou/e ‘atos’ de arrogância são assim acolhidos como participantes da construção da ordem social ou jurídica. Pois, a apreensão da noção de arrogância no direito público não visa sistematicamente os poderosos, governantes e órgãos de autoridades. No que os tange, as ilustrações imperam, seja na organização ardilosa de plebiscitos pelos quais as disposições constitucionais consagradas ao referendum por um Presidente da República da França ou de pretensões da União Européia a se atribuir competências que o tratado não lhe outorga, por exemplo em direito de família ou em matéria econômica e social. Em uma parte, composta pelos fatos de arrogância à origem de um ato jurídico, a representação da arrogância tocaria servidores e funcionários do Estado, às vezes subordinados aos seus ditames, que captam ou tentam distribuir uma função que eles não possuem. Mais que a usurpação de função, trata-se da utilização de uma competência, prerrogativa, por parte de um agente ou por uma pessoa que não está habilitada a realizá-la.

Poderíamos, assim, discernir dois modelos: um dentro da retórica jurídica e outro situada à margem: os fatos de arrogância que reparam a desordem do direito abrindo em uma teoria de funcionários de fato e a arrogância da influência da doutrina apontando para a ascendência dos especialistas e dos professores de direito nos circuitos de fabricação de normas jurídicas e das decisões da justiça.(32)

J. Devido ao fato de ela interferir na legitimação da arrogância, ateoria dos funcionários de fato nos parece essencial. Ela abrange os comportamentos, os fatos e os atos dentro de um mesmo quadro, não são os transbordamentos dos funcionários e servidores do Estado que devem ser considerados, mas os atos que eles foram tomados pelas circunstâncias dadas e que são estimados pelo juízes, indispensáveis ao restabelecimento ou a manutenção da ordem social como o funcionamento regular do serviço público. A usurpação de uma competência ligada à função ou à missão por um não-titular dela, mostra-se, finalmente, prática, eficaz e determinante.

As primeiras situações distinguidas seriam reveladoras de umaarrogância que nós poderíamos qualificar como incompetente. Elas se relacionam com a eleição, nominação ou a ocupação irregular de posições chaves que supõe o exercício de funções decisórias, de/para pessoas determinadas. Isto retorna a situação dos eleitos, funcionários ou agentes públicos, que entram ou são mantidos em suas funções de modo irregular. Essa ilegalidade só é constatada posteriormente ao intervalo temporal no qual após o exercício dos poderes e as decisões terem sido tomadas ou executadas durante o referido tempo.

K. As anulações contenciosas da entrada ou da manutenção na função são objeto de regulações administrativas. As decisões que foram tomadas por responsáveis declarados incompetentes porque foram ilegalmente nominados, são absorvidos astuciosamente na noção de ‘funcionário de fato’. Os atos, decisões, projetos, operações ou despesas são autentificadas mesmo que esses eleitos ou agentes que não disponham do poder de decidir, que não possuem a competência de emitir ordens. A teoria do funcionário público mostra a gravidade das conseqüências prejudiciais da incompetência legal de um eleito ou funcionário. Ela poderia traçar uma das dimensões da segurança jurídica colocando em evidência o funcionamento dos serviços públicos e a estabilidade das situações, um retorno a ordem anterior é indispensável. “O funcionário irregularmente nomeado para exercer as funções que ele ocupa deve ser visto como investido dessas função enquanto sua nominação não for anulada”(33) e todas as decisões tomadas antes da constatação da ilegalidade e anulação de sua nominação ou de sua manutenção na função são regulares.(34)

L. A questão de uma arrogância incompetente abrange também a arrogância clairvoyante, isto é, quando a situação justifica a emissão de uma ato de tonalidade jurídica por uma pessoa sem título oficial. A teoria do funcionário de fato encontra respaldo na noção de ‘circunstancias particulares’ autorizando qualquer pessoa, desde que possua conhecimento da situação, a se posicionar como tomador de decisão, a assumir os poderes de decidir atos, que impõem a cada um obrigações, ou concede a cada um direitos. Deve-se, portanto, estabelecer uma distinção entre as situações consideradas pelo juiz de modo a regularizar tais atos, a despeito de sua ilegalidade fundamental e de usurpação de um título por uma pessoa, um eleito ou um funcionário – às vezes a contragosto. Dois aspectos são suscitados: aquele dos funcionários de fato ‘em período normal’ e aquele de funcionários de fato ‘em período conturbado’. Os princípios da aplicação não podem ser idênticos nos dois casos, mas eles, a cada vez, possuem como finalidade não o vício, mas a virtude da arrogância.

M. A teoria dos funcionários de fato, principalmente em períodos conturbados, manifesta-se juridicamente a posteriori – durante períodos normais –, mas concretamente desde o aparecimento desses fenômenos que obrigam a tomada de uma decisão. Ela possui sentido nas situações de guerra, de catástrofe natural, de qualquer outra crise, significando geralmente que a autoridade constituída ou o agente habilitados são ausentes, desapareceram, e que, como suas atribuições são essenciais à manutenção do laço social ou da segurança pública, eles devem de qualquer maneira ser exercidos. Essas medidas são exercidas por ‘cidadãos de boa vontade’, por uma ou mais pessoas que, conscientes da arrogância que elas exercem, estimam necessário o exercício do poder diante do ‘vazio’ político, jurídico, administrativo, social, suscitado pela situação presente.

Contudo, é sempre o juiz que deve discernir se houve ou não a situação de funcionário de fato ou simplesmente um colaborador ocasional de um serviço público dado.

III – A arrogância de direito: os ofícios do juiz

N. Antoine Garapon, durante uma entrevista sobre a eventual reforma da justiça em 1998, relembrou que “a arrogância dos altos funcionários não deixa a desejar aquela dos juízes, nem aquelas dos grandes chefes do direito divino”.(35) Por outro lado, Philippe Malaurie notou que “o poder e a regra, em si mesmo, podem ser justos ou injustos, eficazes ou prolixos, lícitos ou ilícitos, oportunos ou não (…), eles não são nem orgulhosos nem humildes, salvo se ligados ao seu objetivo: como para uma pessoa, a humildade de uma lei, de uma jurisprudência ou de uma doutrina é a consciência que ela tem de seus limites, de suas imperfeições e da vontade de corrigi-los. O orgulho, ao contrário senso, é o excesso deliberado, alimentado da sua sorbeba, conquistas e seu aparente poder: uma confiança exclusiva e ilusória de suas próprias forças, a humildade se aproxima, portanto, da competência: ser humilde, para o legislador, para o juiz ou para um professor, é primeiramente, não sair de sua competência.”(36)

Distinguir os indivíduos e os textos, entre os órgãos e os atos, entre as situações e as decisões é indispensável. Essa dissociação mantém-se a distância da função subjetiva da arrogância. A noção do ‘respeito do direito’ é presumida. Se, ao longo de um processo, um juiz usa métodos de interpretação que anunciam um excesso do texto de referência, ele o faz para as instituições e não para si mesmo. Quando o texto da constituição possui lacunas ou a lei é ambígua, se alguns valores essenciais não são transcritos, o juiz se autoriza a os completar, explicitar, esclarecer. O respaldo desse processo que expõe uma apreciação da intenção do legislador ou de um recurso aos objetivos da lei, o que pode assinalar a desorganização oriunda da proliferação das leis experimentais, sujeitas a reexame ou a reavaliação, apreender como “uma ‘coisa’, permitindo ao governo o fato de passar uma lei com receios da oposição a sua adoção ou à sua aplicação.”(37) Dentro do campo que chama os valores, intervém o juiz. E, desse fato, seus atos de arrogância são, talvez, integrantes dos direitos humanos no sistema jurídico.

Essa modalização interessa aos “princípios gerais do direito”. Nesse campo, no entanto, a noção de arrogância interage somente à margem. Contudo, quando os juízes, quaisquer que sejam, são suscetíveis a exceder o campo de suas atribuições, a desenvolver o terreno de suas prerrogativas, a questão deve ser posta sobre o objetivo de suas extensões, a fim de retirar o espectro do ‘governo de juízes’.(38)

“Nenhum juiz, mesmo o constitucional, não saberia assumir o poder de substituir sua vontade àquela do Parlamento, salvo para atingir o coração mesmo do regime político”;(39) o juiz deve “se ater necessariamente aos textos dos quais ele é encarregado de fazer a aplicação em função de interpretação do Conselho Constitucional, salvo para a usurpar o ato da função interpretativa deste último e assumir um poder que não lhe é atribuído”,(40) adiciona outro.

Mas, em um exemplo, o Conselho Constitucional relembrando o legislador que a garantia de direitos (41) exigia de sua parte, durante a abordagem ou a modificação de uma lei anterior, “não levar às situações legalmente adquirida uma violação que não seja justificada suficientemente por um motivo de interesse geral”, podia, deste modo, fazer um impasse sobre o princípio segundo o qual “a lei é a expressão da vontade geral”.(42) Foi portanto estimado que “a vontade do legislador de assegurar em 2013 receitas suplementares… não constitui um motivo de interesse geral suficiente para questionar a reatroatividade de uma imposição na qual o legislador atribuiu um caráter liberatório (…)”(43) A referência da noção de interesse geral, mesmo mítica e mitificante, asseguraria uma pacificação social. Nada, portanto, é formalizado, a qualidade de “juiz” do Conselho Constitucional na França não nos parece que deve ser mais contestada.

Desse fato, a arrogância do juiz é endossada. A reprovação geral de todo governo dos juízes se mede doravante à luz dos circuitos de fabricação de opinião pública, através de uma concepção pseudo-democrática dos negócios políticos.

O. A postura dos juízes no exame dos textos votados pelos legisladores ou editados pelos governantes como as decisões de administradores, conduz a um aprofundamento das referências que aproveita uma pesquisa de melhora das relações jurídicas e das relações sociais. Na França, o exemplo dos princípios gerais do direitoque o Conselho do Estado aplica em certos casos contenciosos embasaria o estudo de uma virtude da arrogância no que introduz o pensamento dos direitos fundamentais na evolução dos discursos políticos e jurídicos.

O raciocínio a propósito dos princípios gerais do direito não é idêntico para o Conselho Constitucional e para o Conselho do Estado na França.(44) A construção de um princípio fundamental ou de uma princípio geral do direito não é fácil nem para um(45) nem para o outro, tampouco a localização desses princípios na hierarquia das normas. Os princípios gerais do direito, — que podem ser entendidos como os princípios fundamentais reconhecidos pelas leis da República, ou até mesmo os princípios e objetivos de valores constitucionais — são normas que, a partir dos textos jurídicos ou seguindo os entendimentos jurisprudenciais, os juízes se autorizam a extrapolar. Deles são extraídos uma linha de conduta que empunha o princípio geral. O princípio que se impõe a todo poder intitulado se emana do Conselho Constitucional,(46) ao poder executivo e a administração é utilizado pelo juiz administrativo. A violação desses princípios é analisada em seguida como uma violação da Constituição da Lei.

A força jurídica dos princípios é primordial nas teorias democráticas e sociais e é derivada dos seguintes princípios: igualdade, liberdade de associação, liberdade de consciência, dignidade, continuidade do serviço público, segurança jurídica, etc. Se eles perturbam a hierarquia das fontes do direito, os princípios são rapidamente inseridos no ordenamento jurídico, nas normas de constitucionalidade do fato da autoridade, que é atribuída às decisões das Cortes Constitucionais, nas normas de valor legislativo quando são enunciadas pelos juízes administrativos. Aplicáveis “mesmo na ausência de textos”, eles contribuem à disseminação da retórica de direitos humanos no sistema jurídico. Qual que seja, o juiz se concede o direito de os fazer surgir e os sobre determinar. Essa arrogância dos juízes contribui paradoxalmente para a luta contra a instrumentalização dos meios de recusa da arrogância no poder.

P. Para além desse poder normativo que os juízes atribuem a eles mesmos, outras ilustrações da noção de arrogância se fazem presentes, por meio de um poder de julgar que ultrapassa as linhas do direito, poderiam ser propostas as imediações das funções de avaliação, colocando em cena os especialistas. Esta predisposição descomporia a tentativa de discernir as gamas jurídicas da arrogância, em razão da diluição dos sentimentos e posicionamentos individuais ou do pessoal que atua nos julgamentos, de avaliação de expertise – que é um dos vetores possíveis da expressão da arrogância técnica de conselheiros fortes de seu próprio conhecimento e da sua própria experiência.

Q. Contudo, nas ciências jurídicas, a arrogância – do poder, do funcionário, do juiz, do especialista – não é analisada no fato de abusar de um direito ou de um poder, ela não se reduz, tampouco, a um fato de assumir um direito ou um poder que não se detém legalmente, – ato de governo, funcionário de fato, poder normativo do juiz, governo dos juízes, sendo essas representações. Ela não se revela igualmente no fato de um órgão ou um agente exercer um poder legalmente atribuído e usar um direito ao qual ele é habilitado … com o objetivo de orientar, de guiar, de orientar, de decidir sem possuir a função.

A arrogância no direito é sempre uma arrogância do poder. Em síntese, ela deixa pensar que todo ator da vida política é, pelo fato e ato, potencialmente um tomador de decisões, ou até mesmo um dirigente…

Notas:

  1. HAROCHE, Claudine; CASTEL, R. Propriété privée, propriété sociale, propriété de soi. Paris: Fayard, 2005.
  2. AUBERT, N. ; HAROCHE, Claudine (dir.). Les Tyrannies de la visibilité. Paris : Érès, 2011.
  3. Cf. BLANCO, Fl Pouvoirs du juge et contentieux administratif de la légalité, Paris: PU.A.-M., 2010; BRISSON, J.-F. Le recours pour excès de pouvoir. Paris: Ellipses, 2004.
  4. Por ex., KOUBI, Geneviève; SANCHEZ-MAZAS, M. (dir.),Le harcèlement. Bruxelas: Éd. Univ. de Bruxelles, 2005.
  5. FRANÇA. Code de la consommation, art. L. 122-8.
  6. FRANÇA. Code pénal, art. 314-1.
  7. FRANÇA. Code de commerce, art. L. 420-2.
  8. FRANÇA, Declaração de direitos do homem e do cidadão de 1789, art. 7, in verbis: “Ninguém pode ser acusado, preso ou detido senão nos casos determinados pela lei e de acordo com as formas por esta prescritas. Os que solicitam, expedem, executam ou mandam executar ordens     arbitrárias devem ser punidos…”
  9. É realizado “por uma pessoa depositária de autoridade pública ou encarregada de uma missão de serviço público, agindo no exercício ou durante o exercício de suas funções ou de sua missão, ordena ou realiza arbitrariamente um ato viola a liberdade individual.” Code pénal, op. cit, art. 432-4.
  10. Nesse caso, é o fato de “se abster voluntariamente de colocar um fim caso tenha o poder para tanto ou, no caso contrário, de provocar a intervenção de uma autoridade     competente.”Code pénal, op. cit., art. 432-5.
  11. KHERAD, R. (dir.), Légitimes défenses. Poitiers: éd. Faculté de droit et des sciences sociales de Poitiers, 2007.
  12. VILAIN, Ph. Éloge de l’arrogance. Paris: Éditions du Rocher, 2012, p. 27.
  13. MAULARIE, Ph. L’humilité et le droit, LPA, 1º de junho de 2006, n° 109, p. 6.
  14. BOURDIEU, P. La force du droit, ARSS, 1986, n° 64, p. 3.
  15. Convidando a se preocupar com a corrupção, desfalques, golpes, confiscos, abusos.
  16. “O imperativo do consenso revela-se uma herança inesperada para todo poder que procura colocar um freio às propensões políticas das pessoas. Ele agrega toda forma de dissidência dentro de um grupo obrigando os atores a utilizar um jargão único e a concordar com um mesmo objetivo” DENEAUT, Alain. Gouvernance. Le management totalitaire. Quebec: Lux Éditeur, 2013. Pag. 79.
  17. CHEVALLIER, J. “Réflexions sur l’idéologie de l’intérêt général”, in Variations autour de l’idéologie de l’intérêt général (I.), PUF, CURAPP,     1978, p. 13.
  18. DUEZ, P. Les actes de gouvernement, Paris: Dalloz, 2006 (reed. 1935).
  19. SFEZ, G. Les doctrines de la raison d’État,     Armand Colin, coll. U Philosophie,     2000.
  20. CARPENTIER, E., “La résolution juridictionnelle des conflits entre organes constitutionnels. Principaux apports d’une étude comparée“, RIDC, 2007, p. 822.
  21. VONSY, M., “Actes de gouvernement et droit au juge”,RFDA, 2008, p. 728.
  22. Art. 13 da Convenção Européia dos Direitos do Homem: “Qualquer pessoa cujos direitos e liberdades reconhecidos na presente Convenção tiverem sido violados tem direito a recurso perante uma instância nacional, mesmo quando a violação tiver sido cometida por pessoas que actuem (sic) no exercício das suas funções oficiais.”
  23. FAVOREU L., “Pour en finir avec la ‘théorie’ des actes de gouvernement”, in Mél. Pierre Pactet, Paris: Dalloz, 2003, p. 615.
  24. FRANÇA, Constituição. Art. 16 al. 1: “Quando as instituições da República, a independência da Nação, a integridade de seu território ou o cumprimento de seus compromissos internacionais são ameaçados de forma séria e imediata e o funcionamento regular dos poderes públicos constitucionais é interrompido, o Presidente da República toma as medidas exigidas por essas circunstâncias,…”.
  25. CE, 26 maio 2006, René-Georges A, req. n° 293768.
  26. CE, 30 dez. 2003, Josiane A., req. n° 230715.
  27. CE, 6 out. 1969, Sieur X, req. n° 74169; CE, 18 dez. 1998,SARL du parc d’activités de Blotzheim et a., req. n° 181249; CE, 8 jul. 2002, Commune de Porta, req. n° 239366; CE, 21 maio 2003, Fouzia X, req. n° 251690; CE ass., 9 jul. 2010, Féd. de la Libre pensée, req. n° 327663. Existe inclusive no direito interno, uma decisão do Presidente da República relativa aos testes nucleares: CE, Ass. 29 set. 1995, Assoc. Greenpeace France, req. n° 171277.
  28. FRANÇA, Constituição. Art. 20 al. 1: “O Governo determina e conduz a política da Nação”.
  29. CARPENTIER, E., “‘L’acte de gouvernement’ n’est pas insaisissable“, RFDA, 2006, p. 661.
  30. MALAURIE, Ph., “L’humilité et le droit”, LPA, 2006, op. cit.
  31. VILAIN, Ph. Éloge de l’arrogance, 2013, op. cit. p.     19.
  32. Esse tema não será tratado aqui. MARIS, B. Les sept péchés capitaux des universitaires, Paris: Albin Michel, 1991; FONTAINE, L. Qu’est qu’un grand juriste?, Paris: Lexenso, 2012; SUPIOT, A. “Grandeur et petitesses des professeurs de droit”, Les Cahiers de droit, vol. 42, n° 3, 2001, p. 595.
  33. CE, 16 maio 2001, Préfet de police c/ Ihsen M., req.     n° 231717.
  34. WEISS, J.-P. L’apparence en droit administratif français,Thèse Paris 2, 2009.
  35. Entrevista com A. Garapon, “La révolution invisible,” LPA, 9 nov. 1998, n° 134, p. 4.
  36. MAULARIE, Ph. L’humilité et le droit, op. cit.
  37. Ibid.
  38. TROPER, M. Le gouvernement des juges, mode d’emploi,Quebec: Presses Université Laval, 2007.
  39. DISANT, M., “La responsabilité de l’État du fait de la loi inconstitutionnelle”, RFDA,     2012,     p. 1181.
  40. MATHIEU, B. “L’autorité des décisions du Conseil constitutionnel,” Cah. constitutionnels de Paris I, 2010, p. 78.
  41. Art. 16, Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, op.    cit.
  42. Art. 6, Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, op.    cit.
  43. Conselho Constitucional. caso n° 2012-662 DC de 29 dez. 2012, lei de finanças para 2013.
  44. MAILLOT, J.-M. La théorie administrativiste des principes généraux du droit,     Paris: Dalloz, 2003.
  45. BOURRACHOT, F., concl. s/ CAA Lyon, 21 jun. 2001, Nardone c/ Région Rhône-Alpes, RFDA 2002 p. 735: “se não é impossível de descobrir dos princípios gerais do direito que enquadram as atividades de polícia e do serviço público da coletividade territorial, nos parece muito mais difícil de descobrir dos princípios gerais do direito que regem o funcionamento das coletividades territoriais devido o princípio da livre administração das coletividades territoriais […]. Os princípios gerais do direito são descobertos pelo juiz mas nos parece difícil de se arrogar um direito negado ao poder regulamentar e reservado ao legislador.
  46. Art. 62 al. 3 Constituição Francesa, op. cit.: “As decisões do Conselho Constitucional não são sujeitas a recurso. Impõe-se aos poderes públicos e todas as autoridades     administrativas em geral.”

Fonte: Outras palavras