Mulher e mídia: uma pauta desigual?

“A mídia comanda, sem mandar. Mandam a mulher ser bela, ser magra, ser boba, ser mãe, ser invejosa, competir com as outras[…]” 

Intensa repercussão nas redes sociais problematizando o papel da mídia na construção da ‘mulher ideal”. Imagem: Reprodução Coletivo Não me Kahlo.
Intensa repercussão nas redes sociais problematizando o papel da mídia na construção da ‘mulher ideal”. Imagem: Reprodução Coletivo Não me Kahlo.

Para muitos/as pesquisadores/as, os veículos de comunicação fixam estereótipos geradores de preconceitos e discriminação, produzindo e reproduzindo valores e hábitos consoantes a formações ideológicas sexistas. A mídia reforça um modelo de superwoman, isto é, da mulher que está inserida no mercado de trabalho, que cuida dos filhos, do marido e da casa e ainda está sempre arrumada, reforçando modelos de beleza calcados na feminilidade e na juventude.

Para a coordenadora do Observatório da Mulher[1], Rachel Moreno, “a mídia comanda, sem mandar. Mandam a mulher ser bela, ser magra, ser boba, ser mãe, ser invejosa, competir com as outras, manda correr em busca da felicidade perfeita que virá a partir da compra de produtos e valores, da exibição de marcas e etiquetas que nos identifiquem e qualifiquem. Sem tom de mando, a mídia evita a resistência e a rebelião” (MORENO, 2009, p. 13).

Como exemplo do que foi elencado por Rachel Moreno, podemos citar a reportagem da revista Veja, publicada em 18/04/16, intitulada Bela, recatada e “do lar”. A matéria, assinada pela jornalista Juliana Linhares, apresenta um perfil da vice-primeira-dama do Brasil, Marcela Temer, descrita como uma mulher “43 anos mais jovem que o marido, aparece pouco, gosta de vestidos na altura dos joelhos e sonha em ter mais um filho com o vice” (LINHARES, 2016).

A veiculação do texto pode ser concebida como exacerbação de uma “fórmula para o sucesso”, ou mesmo a exaltação de um aspecto da condição feminina que naturaliza a subalternidade até com certo glamour, uma vez que expõe faces do cotidiano da mulher de um dos políticos mais influentes no Brasil. Contudo, a matéria deixa de explicitamente problematizar tal naturalização, o que poderia ter oferecido, aos seus/suas leitores/as, um cardápio eclético acerca do significado do que pode vir a “ser mulher” em nossa sociedade.

Ao longo de cinco parágrafos, o texto evidencia as qualidades de personagem, ao exercer seu papel de mãe e esposa dedicada, reforçando estereótipos da maternidade plena e da beleza feminina. Desse modo, a revista aposta, mesmo que de modo subliminar, na exacerbação do que considera como positivo para o modelo “ideal” de esposa para um politico. Uma receita que explicita o patriarcado, mas não questiona as razões que justificam a sujeição ao lar como único destino para uma parcela das mulheres brasileiras.

Não seria exagero dizer que a mídia detém grande poder de sedução e influência sobre a sociedade justamente por fazer a mediação entre a esfera pública e a privada. Ou melhor, por sua capacidade de reproduzir, para um grande número de pessoas, algum fato social. Tal postulação fica evidente quando percebemos que o texto “Bela, recatada e ‘do lar’” tornou-se um dos assuntos mais comentados nas redes sociais e provocou a reação dos/as internautas, que rechaçaram a exposição do modelo de mulher estampado nas páginas do semanário, e utilizaram postagens com a hashtag #belarecatadaedolar e a paródia #belaescrachadaedobar.

A revista talvez não contasse com a capacidade de mobilização de diversos/as leitores/as que acessaram as redes sociais para problematizar o papel da mídia no Brasil e visibilizar perfis de mulheres que puderam fazer outras escolhas, aquelas que subverteram a ordem comandada pelos desvalores que imputam sérias restrições ao público feminino. Mulheres que não se enquadram no que o veículo expõe como o “padrão de feminino” tão necessário para a conformação da ficcional e cada vez mais encenada “tradicional família brasileira”.

*Ana Veloso é professora do Departamento de Comunicação da UFPE e pesquisadora do Observatório de Mídia – Gênero, Democracia e Direitos Humanos.

  1. Organização que busca contribuir, resgatar e tornar visíveis as lutas das mulheres no Brasil. Tem como objetivos promover os direitos das mulheres, democratizar a comunicação e produzir e veicular informações sob o ponto de vista das mulheres (http://observatoriodamulher.org.br/site/).  Acesso: 15 set 2010.

 

Referências:

MORENO, Rachel. Vigiar, seduzir, excluir – a colonização das mentes. In: LIMA e VICENTE. O Controle social da imagem da mulher na mídia. São Paulo: Articulação Mulher e Mídia, 2009, p. 11-16.

LINHARES, Juliana. Bela, recatada e “do lar”. Revista Veja, 18/04/2016.

Fonte: ombudsPE